Já fui mais de andar pela cidade, entrar em livrarias novas ou ir à caça de raridades nos sebos empoeirados da Praça João Mendes.
Hoje, contudo, contento-me – e muito – em ser cliente VIP do Sebo Cordélia na zona oeste da capital paulista.
De tanto nomes que contribuíram para a formação da cultura brasileira, foi lá que encontrei no susto um exemplo da obra Correspondência, uma coletânea de 53 cartas trocadas entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco – às vezes em tom bastante formal, mas sempre afetuoso, a denotar o apreço sincero de um amigo pelo outro.
A coletânea que eu tinha em mãos naquele ano de 2020, vim a descobrir mais tarde, levou mais de sessenta anos para ter sua 3ª edição publicada, em 2003. A afeição e a admiração mútua do escritor e do político abolicionista que viveu a queda do reinado de D. Pedro II e o advento da república é simples, honesta e profunda. Não nasce – como se lê nas cartas – de bajulação, tampouco demanda comprometimento para além do idem nolle, idem velle. Não pede indicação de cliente, não passa rasteira no trabalho,, não disputa mulher, não telefona para dasabafar asneira.
É presença quando presente. É presença como presente. Nem sempre ao vivo, mas no pensamento, na intenção e sem dúvida na escrita como, por exemplo, numa das cartas em que Nabuco expressa seus pêsames pelo falecimento de D. Carolina, esposa de Machado, que fiz questão de transcrever ao final deste texto.
As cartas foram reunidas inicialmente por Graça Aranha e publicadas pela primeira vez por Monteiro Lobato, em 1923. Esta terceira edição traz também uma pequena coletânea de fotos e imagens interessantes do acervo da ABL, como a página do último livro de Machado de Assis, Memorial de Aires, finalizado pouco antes de sua morte, e a fotografia autografada que Joaquim Nabuco tirou em Londres e enviou a seu amigo no ano de 1904.
Há ainda uma sequência de anexos que reúne artigos escritos por Émile Faguet e Vicenso Morelli sobre os pensamentos publicados de Joaquim Nabuco, além do discurso de Rui Barbosa no enterro de Machado de Assis.
É, sem dúvida, uma obra que vale a pena ser vista, lida, tocada. Uma peculiar coletânea que extrapola seu propósito para o olhar cuidadoso, mas como tantas outras encontrou não escapou ao destino fatal do esquecimento de uma nação.
Segue abaixo a transcrição de alguns trechos:
“Nabuco a Machado
Londres, 17 de novembro de 1904.
Meu caro Machado,
Que lhe hei de dizer? Morrer antes de V. foi um ato de misericórdia que a Providencia dispensou a Dona Carolina. A viúva sempre sofre mais, às vezes tragicamente. No seu caso a imaginação, o interesse intelectual, o trabalho é um ambiente que permite em parte à dor a evaporação excessiva. A solução do dilema inevitável foi a melhor para ambos: coube a V. o sofrimento, V. compreenderá que o vácuo do coração precisa ser compensado pelo movimento e pela agitação do seu espírito. Será este o seu conforto e a maior divida da nossa língua para com o tumulo cuja sombra V. vai se acolher.
Quanto sinto, meu caro amigo, não estar ao seu lado; está, porém, o Graça. Coitado. Que triste volta a dele: o seu luto e a moléstia do Veríssimo. Fico ansioso por noticias deste. O telégrafo anuncia-nos também mortes e ferimentos do Rio de Janeiro. Eu que julgava passada para a Republica a crise das convulsões!
Adeus, meu caro Machado,
Creia-me sempre muito sinceramente seu,
Joaquim Nabuco” (p. 125).
Quatro anos depois Nabuco escreve a Graça Aranha acerca do falecimento de Machado de Assis.
“Nabuco a Graça Aranha
Washington, 29 de outubro de 1908.
“… Lá se foi nosso Machado! A vida nas condições em que ele vivia devia ser cruel, mas para a inteligência o existir compensa todos os sofrimentos, e isto tanto mais quanto mais alta ela é. Agora é que vemos a nossa pobreza. Eu sou muito contrário à ideia de estátua. A estátua para ser digna dele teria que ser uma grande obra. A melhor ideia, grande demais para nós, seria comprar a casa e conservar tudo tal qual. Essa é a maior prova de veneração da posteridade. Lembra-se da nossa visita à casa de Voltaire? O pensamento mais delicado desse gênero que eu saiba é o dos americanos, que em Cambridge compraram o espaço defronte da casa de Longfellow, para conservar intacta a perspectiva que tinha o poeta. Quanto ao mais belo tumulo é para mim uma pedra entre flores, como a de Shelley, e à sombra de uma grande arvore. Podia-se até ter pássaros. Nós, porém, não temos meios para nada…” (p. 203).
Ficha técnica:
Machado de Assis & Joaquim Nabuco – Correspondência
Org. Introd. E notas de Graça Aranha
Prefácio da 3ª edição José Murilo de Carvalho
Topbooks editora, Rio de Janeiro, 2003.