A Porta Estreita

Acorda dona Lola todos os dias pontualmente às seis da manhã. Toma banho, veste-se, maquia-se de base, rímel e batom, toma meia xícara de café preto, sem açúcar, e come  uma bolacha de maisena. Deixa as crianças de cinco e oito anos a cargo do marido ajeitar e levar para escola. Pega o jaleco dependurado atrás da porta do quarto e sai apressada, embora com tempo de sobra, para o trabalho.

Lola, de Loreta, cabelereira, entra no ônibus e segue viagem por vinte e cinco minutos. Desce um ponto antes do salão, passa na igreja já sem missa. Observa por alguns minutos os vitrais coloridos em dia de sol. Faz uma oração, o sinal da cruz e caminha até o trabalho.

Passa o dia esticando, pintando, lavando e secando cabelo. Almoça rápido, fuma um cigarro e volta para a próxima cliente. Pede a São Pedro que não faça chover na hora de ir embora para casa. Roga a Nossa Senhora que proteja seus filhos na escola.  Cobra de São José que arrume trabalho para seu marido, mas um que pague bem, porque tá tudo muito caro.  Lembra que parou a novena na metade, mas isso não é motivo pro santo fazer desfeita. Dá risada com a perua que errou na cor do cabelo ao tingir em casa. Ouve atenta a velhota contar o último capítulo da reprise da novela O Clone. Lamenta que Carlos e Joana, a dona do salão, estão se separando… a vida é assim mesmo, pensa ela. E Carlos não é flor que se cheire… nunca foi.

Bate o ponto da saída e espera o ônibus chegar. Checa o instagram e o facebook mais uma vez. Acha bonitos uns potes de plástico colorido que vê na internet. São potes de alimentar cachorro. Não tem cachorro, mas já pensou em ter um. Comenta na foto de praia da vizinha que tirou férias. Diz amém para a imagem de Santa Teresinha que aparece subitamente no feed de noticias. Não lê jornal para não se irritar. Não lê livros porque não dá tempo. Passa em frente à igreja que entrou pela manhã, mas dessa vez está dentro do ônibus, em pé, apertada e sufocada. Era justo a hora da missa, e pela porta entreaberta era possível ver a luz acessa e algumas pessoas. Porta estreita, pensou ela. Tá chegando o São João… a festa. Tinha que passar no mercado e comprar milho e canjica para ajudar na quermesse da rua.

Chega em casa, beija as crianças, começa o jantar. O marido mexe no carro parado na garagem. Ainda desempregado.  Comida pronta, todos jantam rapidamente. A Carolina hoje caiu no pátio da escola, disse o mais velho. Valha-me Deus!  Corre Lola a olhar o joelho raspado da menina que ensaiava um choro. O marido liga a TV, deixa eu ver a notícia, benzinho. Menina de 11 anos grávida de um menino de 13 anos. Gestação de 29 semanas interrompida. Aborto concedido pela justiça e realizado pelo hospital. Vamos para a cama, não tem nada de bom passando mesmo… As crianças vão pro quarto, Lola toma outro banho enquanto o marido senta no sofá e mexe no celular. Boa noite, tô cansada,  diz ela. Vai lá, meu bem, descansa,  diz ele. Começa uma oração já deitada na cama, mas adormece na metade.

Acorda na manhã seguinte, pontualmente, às seis da manhã…

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